Marco Carvalho

Alfenas e o retrocesso da inclusão escolar: quando o discurso da “responsabilidade fiscal” esconde escolhas políticas.

Por Marco Carvalho - Marquinho do SUS
Advogado e historiador, especialista em Gestão Pública, Direito Administrativo, Direito Sanitário e Auditoria do Setor Público. Professor e militante social em defesa do SUS, da educação, da inclusão e da democracia. Atua buscando conectar conhecimento técnico e visão humanizada para o desenvolvimento responsável do potencial de Alfenas.
A Prefeitura de Alfenas anunciou que, até o próximo dia 5 de setembro, centenas de servidores contratados da educação, entre eles mais de 200 professores de apoio especializados serão dispensados. No lugar deles, serão contratados profissionais de apoio (cuidadores sem formação pedagógica, com atribuições restritas a higiene, alimentação, locomoção e segurança dos alunos).
A justificativa apresentada pelo Prefeito, acompanhado da Secretária de Educação, do Vice-Prefeito (ele próprio educador e ex-secretário da pasta) e do Procurador Jurídico do Município, girou em torno de dois argumentos: um suposto desequilíbrio orçamentário e uma ideia de “responsabilidade fiscal”.
Não houve uma única palavra na entrevista concedida ao Diário Independente sobre os impactos pedagógicos dessa medida. Pelo contrário: a frieza com que nossas crianças com deficiência foram tratadas, quase como se fossem casos “perdidos” dentro das prioridades da administração, causou indignação em muitos telespectadores.
Enquanto isso, na mesma entrevista, o Prefeito e seu Vice anunciam como prioridades a construção de um estádio e de um ginásio poliesportivo. A mensagem é clara: em Alfenas, inclusão escolar pode esperar.
A armadilha legislativa criada em 2025
Alguns vereadores da base, pressionados pela repercussão negativa, passaram a afirmar que foram pegos de surpresa pela decisão. A verdade é outra: em julho de 2025, a Câmara aprovou a Lei Municipal nº 5.341/2025, que criou, entre outras, essas 200 vagas para o cargo de “profissional de apoio”.
Essa lei foi o instrumento que abriu espaço para a substituição dos professores especializados. Ou os vereadores foram ingênuos ao votar sem compreender as consequências, ou estavam de acordo com o plano do Executivo. Em qualquer hipótese, não há como alegar desconhecimento.
O que a legislação educacional realmente determina
É importante ser cirúrgico: a contratação de profissionais de apoio não é ilegal em si. Eles cumprem funções relevantes, especialmente ligadas ao cuidado físico e à segurança.
O problema é quando esses profissionais substituem os professores de apoio pedagógico. E é exatamente isso que está ocorrendo.
A legislação nacional é cristalina:
- Constituição Federal (art. 208, III e V): assegura atendimento educacional especializado e acesso igualitário à educação.
- Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – art. 59, III): obriga a oferta de professores com especialização adequada.
- Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012 – art. 2º, §1º ): obriga a oferta de professores com especialização adequada.
- Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015, art. 28, VII): determina que o poder público forme e disponibilize professores para o AEE.
- Decreto nº 7.611/2011: estabelece que o AEE é de natureza pedagógica e deve ser prestado por profissionais qualificados.
Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto nº 6.949/2009): com status constitucional, garante apoio individualizado para a plena participação dos alunos.
Essas normas convergem em um ponto: não se pode reduzir a inclusão escolar a meros cuidados físicos. Professores de apoio não são substituíveis por cuidadores, porque cumprem funções pedagógicas (adaptam conteúdos, promovem a interação, estimulam a autonomia cognitiva e social).
Restringir o papel dos professores especializados apenas às Salas de Recursos Multifuncionais, no contraturno, é um equívoco jurídico e pedagógico. O AEE é complementar, não substitutivo do acompanhamento em sala regular.
O retrocesso em números
Para compreender melhor, vale observar os gastos recentes da Gestão Fábio nos dois últimos anos (2024/2025):
R$ 5,2 milhões em shows e eventos artísticos;
R$ 2,48 milhões destinados a uma única empresa de projetos de engenharia, sem detalhamento de quais obras;
Quase R$ 1 milhão (R$ 929 mil) em consultorias jurídicas privadas, distribuídas a dois escritórios; (existem outros contratos menores)
R$ 254 mil em diárias de viagem.
Em contraste, o argumento de “responsabilidade fiscal” para justificar o desmonte da inclusão soa como falácia. Há dinheiro para gastar mal, mas não para assegurar direitos fundamentais.
O papel do Vice-Prefeito e a inversão de prioridades
Há aqui um elemento simbólico que não pode ser ignorado: o Vice-Prefeito, que é professor e ex-secretário de educação, endossou a decisão.
Um educador que se cala, ou pior ainda, que legitima o esvaziamento da inclusão, colabora para a erosão de conquistas civilizatórias. Não se trata apenas de gestão, mas de valores.
Estamos diante de um retrocesso pedagógico, social e jurídico. A dispensa dos professores especializados significa negar às crianças com deficiência a possibilidade de participação plena em sala de aula.
Não é uma questão de finanças. É uma escolha política. Ficou muito claro que a gestão Fábio/Eliacim prefere shows, festas e "estádios" à educação inclusiva.
E Não basta indignar-se tão somente. É hora de agir!
Às famílias: organizem-se, denunciem, façam pressão em seus vereadores, procurem advogados especialistas, a Defensoria Pública e façam valer seus direitos.
Ao Ministério Público: cabe a atuação firme, porque se trata de possível violação à legislação educacional e à Convenção da ONU.
À Câmara Municipal: não adianta alegar surpresa. É hora de rever a lei aprovada e de exercer o seu papel de fiscalização.
A inclusão escolar não é luxo. Não é favor. É um direito fundamental, garantido pela Constituição, pela lei e pelos tratados internacionais.
Se Alfenas permitir esse retrocesso, abre-se um precedente perigoso: o de que direitos podem ser negociados ao sabor da conveniência política.
E isso não podemos aceitar.
Nota do autor: escrevo esta coluna não apenas como advogado e professor, mas como cidadão profundamente comprometido com os direitos sociais. Não se trata de retórica. A legislação brasileira e os tratados internacionais não deixam margens: substituir professores especializados por cuidadores é ilegal e injusto. É hora de Alfenas reagir, porque a inclusão é, acima de tudo, um compromisso civilizatório que não pode ser desmontado em nome de prioridades políticas passageiras.
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